abril 15, 2015

Diários de uma vida


O tempo perpetuado na escrita. As lembranças de julho de 1972 são desbotadas em muitas memórias, completamente escuras em outras. Para Aldo Schmidt, 67, todavia, a época registra o início de um hábito que ele não deixaria esfriar. Naquele inverno, quando completava 25 anos, o jovem produtor rural escrevia as primeiras linhas de um diário que se tornaria reflexo de sua vida.

Aldo é o segundo filho mais velho de uma família de 12 irmãos. Com a escolaridade limitada ao 5º ano e as raízes cravadas na região da campanha, o trabalhador abasteceu o caderno, inicialmente, com lembranças latentes trazidas da infância. A palavra escrita está na tradição de sua família. Um irmão e duas irmãs também costumavam nutrir diários acerca de seus cotidianos. Porém, apenas Aldo redige ininterruptamente. Meticuloso, insere até horários de cada atividade descrita.

Na data dos primeiros esboços - 5 de julho, dia de seu aniversário - o agricultor morava com os pais na Colônia Santa Áurea, zona rural de Pelotas. A vida de solteiro e os acontecimentos mais relevantes de sua juventude estão anotados. Conforme novos períodos chegavam, os diários ampliavam - contudo, alguns anos estão armazenados em um mesmo. Hoje, Aldo escreve o 15º diário.

A cada releitura dos antigos cadernos, ele consegue reviver o passado. Desmancha-se em lágrimas emocionadas ao relembrar da troca de alianças com a companheira Nair, hoje com 65 anos, e o nascimento dos filhos Enoir e Mateus, de 35 e 28 anos, respectivamente. "Aqui está toda minha vida", ele aponta sorridente para os diários, guardados em uma antiga caixa de sapatos. Após a formação da nova família, Aldo e Nair, cujas origens também são fortemente vinculadas à agricultura familiar, passaram a viver na Colônia Santo Antônio.

Unidos, construíram a casa que hoje vivem e trabalharam de sol a sol em plantações de vassoura, milho, pêssego, laranja e em produção de leite. Nada está fora dos registros. Os relatos não são secretos, ainda que pessoais. Nair, além de parceira de vida, tem acesso a eles e narra os dias em que o marido está cansado para escrever. "Daqui a muitos anos não vamos existir mais. Os diários vão servir pros nossos netos e bisnetos terem contato com o passado deles, conhecerem a gente", ela argumenta. A produtora rural parou de estudar no 4º ano para ajudar a mãe nos afazeres domésticos e na lavoura.

 

Memória viva

Quando chove torrencialmente ou a seca toma as plantações, Aldo é detalhista. Temperatura e níveis de chuva, assim como dias sem água, são contabilizados. Também a fase da lua é relacionada. Na mesma época do ano seguinte, ele consulta os registros e compara a situação climática, em uma tentativa de prevenir o patrimônio da reprise de episódios negativos.

Apesar de fatalidades não serem passíveis de controle. O diário também carrega elementos de dor. Os mortos de Aldo e Nair estão cicatrizados nas páginas. Ao citar os nomes levados pelo tempo ele desenha ao lado uma cruz, em símbolo de luto. No fundo dos óculos, os olhos do agricultor pesam ao refrescar memórias tristes.

Rodeado pelas paredes azuis da cozinha, a escrita entra em sua rotina depois do jantar. Sentado à mesa, ele escreve, diariamente, mais um capítulo de sua vida, há 43 anos. Conteúdo sem roteiro preparado, a única certeza é que a cena deve se repetir hoje, atravessar estações e continuar pelos demais dias que seguem.

Dono de caligrafia miúda e entrelaçada, Aldo Schmidt desafia a era tecnológica e traça a própria história de caneta em punho. Já cogitou digitalizar os cadernos. Entretanto, bem-humorado, alega que isto ocuparia um tempo que ele não tem. Homem simples, não esconde a satisfação ao reencontrar-se nas próprias escolhas. A expressão serena revela: tem uma vida feliz.

Foto: Paulo Rossi
Reportagem veiculada no jornal Diário Popular, Pelotas (RS)

Um comentário:

Lídia disse...

Adorei essa história... Até fiquei em dúvida se são diários de uma vida ou se são vidas em um diário kkk

Escrever é concretizar momentos e confirmar vivências.
É deixar pra trás e é recomeçar.
Elaboração, luto, renascimento.